Cristo entre Deus e os homens
O
texto que vamos adotar como fonte para essa reflexão está no
evangelho de João 8:1-11. Conta a história de uma mulher que foi
surpreendida em surpreendida em adultério. Antes de entrar
na narrativa propriamente dita, é necessário entender algumas
questões de análise textual muito interessantes sobre este trecho
das Escrituras.
Se
você é um leitor atendo, perceberá que algumas bíblias contêm
uma nota de rodapé, dizendo: “não consta na maioria dos
manuscritos antigos”. Antes de qualquer conclusão precipitada, é
preciso que se saiba que a dúvida sobre a preservação deste
texto não é quanto à sua autenticidade, mas quanto ao local aonde
ele foi inserido, o que nos faz pressupor que trata-se de um excerto.
Muitos estudiosos concordam que a narrativa poderia estar após Lucas
21.38, outros, de forma variada, o colocam após João
7.44, João 7.36 ou João 21.25. A justificativa
para definir o local aonde ele deverias estar seria a
dificuldade em se atestar que o material é autenticamente, joanino.
Há numerosas expressões e construções que não são
encontradas em nenhum outro lugar em João, mas que são comuns nos
evangelhos sinóticos. Em termos de estilo textual, o trecho em
questão tem mais afinidade com Lucas.
Por
outro lado, não há motivos para duvidar que o evento aqui descrito
ocorreu, mesmo que ele, no início, em sua forma escrita, não
pertencesse aos livros canônicos. Narrativas semelhantes são
encontradas em outras fontes, além de ter um número significativo
de paralelos com as narrativas dos evangelhos sinóticos. O motivo
dessa inserção aqui pode ter sido ilustrar 7.24 e 8.15 ou, talvez,
mostrar a pecaminosidade dos judeus em contraste com a ausência de
pecado de Jesus (8.21, 24, 46).
Os
versos de 1 a 3 apresentam os argumentos mais fortes sobre o
deslocamento deste trecho de seu lugar original. Por exemplo, em
Lucas 21:37 vê-se a seguinte citação: “Jesus
ensinava todos os dias no templo; mas à noite, saindo, ia pousar no
monte chamado das Oliveiras".
Para alguns estudiosos, o contexto mais adequado para este relato da
mulher adúltera seria a semana santa (semana da paixão de
Cristo). A essa altura, o ministério de Jesus atingira grande
profusão entre os judeus em todo Israel. O pátio do tempo era
um lugar muito movimentado. Uma espécie de arena judaica
pública de grande trânsito de pessoas, aonde alguns escribas
expunham as escrituras para as pessoas que circulavam por ali. Vale
também dizer que a expressão “escribas e fariseus” é muito
comum nos sinóticos, mas a palavra “escriba” não aparece em
outro lugar no Evangelho de João, a não ser neste trecho.
Como
lemos a partir do verso 4, os judeus vão a Jesus tratando-o com
certa ironia, evidenciado na forma como o tratam: “Mestre” (rabi,
didaskale). Apesar de conhecerem sua fama, não o consideravam uma
autoridade judaica, como eram os escribas ou os membros do
Sinédrio. O verso 6 fala sobre a real intenção de testarem
Jesus. Dessa feita, trouxeram-lhe uma mulher supostamente apanhada em
adultério. Algo muito questionável, pois deve-se destacar
que adultério não é um pecado que se comete sozinho.
Bom, “Se fosse hoje em dia, dada a 'qualidade' de alguns
homens que temos, não seria difícil pensar que o cara deu no pé e
deixou a mulher para sofrer nas mãos dos acusadores.” Se por uma
lado existem pontos obscuros no drama, por outro, a situação de
injustiça chama nossa atenção e conclama nossa compaixão, mas não
era bem esta prova que os judeus estavam propondo a Jesus, eles não
estavam exatamente querendo ser zelosos com a Lei.
A
citação da lei que as autoridades fazem (Moisés nos ordena
apedrejar tais mulheres) levanta uma questão amplamente
controversa: a mulher era casada, solteira ou noiva? Isto porque
o texto da Lei a que eles se referiam (Dt 22.23-24) trata de
cinco casos a serem julgados em situação de infidelidade com o
cônjuge ou noivo. Das prescrições mosaicas, apedrejamento era a
punição para uma noiva virgem que fosse sexualmente infiel a
seu noivo. O texto diz que a punição que devia ser aplicada aos
dois parceiros sexuais. Outro texto possível, seria Lv 20.10, cuja
morte é prescrita para todas as esposas infiéis e seus amantes, mas
não se estabelece nenhum método específico (como apedrejamento).
Se ainda os judeus estivessem se referindo à tradição dos judeus,
a Mishná (Sanhedrin 7.4), prevê que os dois casos são
rigorosamente diferenciados: a ofensa (a noiva infiel), na
primeira instância, é punível por apedrejamento (é vista como a
mais séria das duas), e a segunda (o amante) por estrangulamento.
Isso significaria que a mulher nessa passagem era noiva, não casada.
Mesmo
que o caso não apresentasse nenhuma dúvida sobre a infidelidade da
mulher e seu suposto parceiro, estava Jesus diante de um dilema
moral. "E tu,
o que dizes?” Se
Jesus rejeitasse a Lei de Moisés, sua credibilidade perante os
judeus seria instantaneamente minada: ele seria considerado uma
pessoa sem lei, talvez fosse acusado nos tribunais de
crimes graves. Se ele mantivesse a lei de Moisés, estaria
apoiando uma atitude difícil harmonizar com sua bem conhecida
compaixão pelos subjugados e desacreditados; além disso, só o
Sinédrio detinha o direito de pronunciar a sentença de morte por
transgressões contra as leis judaicas (18:31), mas não sem
autorização romana, que era quem executava as penas.
Muito
se tem escrito sobre o que Jesus havia escrito no chão naquele dia.
Alguns dizem que ele estava imitando a prática de magistrados
romanos que, primeiro, escreviam suas sentenças e, depois, as liam.
Outros que ele escrevia o nome do fariseus e seus pecados, fazendo
alusão ao texto de Jr 17:13. John Derret apud Carson
sugere que a primeira vez que Jesus se abaixou, ele escreveu: “Não
seja cúmplice do ímpio, sendo-lhe testemunha mal-intencionada”
(Êx 23.1b), e na segunda vez: “Não
se envolva em falsas acusações nem condene à morte o inocente e o
justo, porque não absolverei o culpado”
(Ex 23.7). Dentre as muitas especulações, o que se pode inferir com
certeza é que escrever no chão era uma ação de adiamento que não
agradou os oponentes de Jesus. Mesmo não sabendo o que Jesus
escreveu, sabe-se que a frase: “Se
algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra
nela”
é uma referência direta a Deut 13.9; 17.7 (cfi Lv 24.14), que diz
que as testemunhas do crime devem ser as primeiras a atirar pedra, e
não podem ter participação no crime em si. Muitos manuscritos
dizem especificamente que os acusadores foram “acusados pela
própria consciência”.
A
atitude desses judeus em fazer o exame de suas consciências, nos
leva a pensar sobre muitos o número de pessoas que se dizem
“cristãos”, mas adotam posturas antinomistas (não
existem leis absolutas). São insensíveis, estão entorpecidos pela
maldade e acha que são o centro do universo. São incapazes de
sentir culpa quando cometem pecados. Como diz Rm 2:29 e Gal 5:19-21
“estão
cheios de injustiça, malícia, cobiça, maldade, inveja, homicídio…
praticam imoralidade, impureza, idolatria e feitiçaria, inimizades,
ciúmes inveja, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a essas”.
Incapazes de se perceberem pecadores, tudo que querem é uma
oportunidade de se mostrar melhor que os demais e encher as mãos de
pedras para serem desferidas contra toda a humanidade. Como no conto
brasileiro de Fernando Sabino, O Grande Mentecapto, quando o
personagem Geraldo Viramundo quis se valer deste trecho bíblico para
defender a viúva Correa Lopes. Ele mesmo tomou uma pedrada na
cabeça.
Quando
os opositores vão embora, Jesus, dirige-se à mulher (igynat) de
forma respeitosa. Da mesma forma como tratou sua mãe (2.4) e a
mulher Samaritana (4:21). Ele, de fato, não pergunta se ela é
culpada, mas se há outros que a condenaram. Embora o final do verso
11 “Agora
vá e abandone sua vida de pecado”
pressupõem que ela tivesse a culpa. Ela responde: “Ninguém,
senhor.” (grego,
kyrie, que significa ‘senhor’ tanto como ‘Senhor’).
Este
belo relato da Escrituras Sagradas nos permite fazer algumas
observações, que vão além de perceber Jesus como um ativista
social, que dedicou sua vida apenas a defender os menos favorecidos
e/ou oprimidos pelo sistema político da época. É sempre bom ter em
mente que o trabalho de Jesus é salvar o mundo!
Primeiro,
podemos perceber que o texto nos ensina que todo pecado é
transgressão da Lei, uma ofensa grave perante Deus e merece a justa
punição. Diante de Deus não há espaço para autojustificação.
Muitos cristãos (nominais) adotam a postura cega em relação ao
ensino bíblico e dizem: "o pecado do outro é mais grave que o
meu" e isso lhe causa uma sensação de conforto com a sua
prática, como se esta percepção psicológica do pecado lhe
conferisse algum tipo de redenção. Isso é um engano! Só
Jesus tem resposta para mim e para você: essa resposta é a sua
graça.
O
que eu chamo de estratégia
da figueira,
é algo tão antigo quanto a própria humanidade. Em Gn 3:7 lemos que
homem e mulher ao se perceberem nus, por causa de seus pecados,
tentaram interpor algo entre eles e Deus. Um artifício de
autojustificação, que não funcionou, não porque era pequeno ou
insuficiente, mas porque nenhum artifício humano pode esconder as
nossas vergonhas quando pecamos contra Deus. Se não mergulhamos na
graça vamos viver todos os dias achando que uma “folha de árvore”
pode esconder as suas vergonhas diante de Deus. Essas
autojustificativas se tornam argumentos para nos defender diante de
Deus, que na verdade nos transformam em acusadores. Lembra-se qual
foi a justificativa do homem ? “foi
a mulher que o Senhor me deu”.
E a da mulher? “foi
a serpente que me enganou”.
Qual
a folha de figueira (argumentos) que você tem usado pra se
esconder/autojustificar?
Que
já leu todos os livros das estantes reformadas ou que sabe de cor
todos os artigos das confissões e catecismos da história da
igreja? Ou é que o seu casamento não dá certo porque seu
cônjuge não muda? Ou que você trata as pessoas com
arrogância e desprezo porque você sabe tudo sobre depravação
total? Tem muito crente lançando todas as fichas na mesma
religiosidade hipócrita daqueles escribas e fariseus. Sentem que não
precisam mudar, pois são justificados pelas seu excelente desempenho
espiritual (salvação pelas obras).
Segundo,
em Mateus 7:1-5 Jesus pergunta sobre qual “critério” temos
usado para fazer nossos julgamentos. “Não
julgueis para que não sejais julgados, pois com o mesmo critério
com que julgardes, sereis julgados...”
Nós não fazemos parte de uma comunidade em que as pessoas
são diferenciadas pela sua moralidade. “Estávamos todos mortos
em nossos delitos e pecados”.
É por isso que afirmação de Jesus “quem
não tem pecado, que atire a primeira pedra”
vem de encontro à nossa condição e exige um exame das nossas
consciências, como fizeram aqueles judeus (v.9), começando dos mais
velhos. O mesmo exame que Paulo recomenda aos Cristãos
de Corinto realizarem quando iam participar da comunhão com Cristo.
I Cor 11:31-32 “se
julgássemos a nós mesmos, não seríamos condenados. Quando, porém
somos julgados pelo Senhor, somos corrigidos, para não sermos
condenados com o mundo”.
Talvez
o seu padrão de conduta moral (ética) tenha te ensinado que o amor
é a única lei absoluta que existe (situacionista), que Jesus amou
aquela mulher independente do seu pecado. Eu quero te dizer que NÃO.
Como eu disse no início, esse texto pode até nos impelir a pensar
que o foco de Jesus era usar de compaixão para com aquela mulher
(vulnerável e desfavorecida), mas isso não é tudo que podemos
extrair desse texto. É preciso pensar que maior de todos os bens que
Jesus poderia ter realizado àquela mulher (pecadora como eu e você)
era salvá-la. (Jo 3:17 e 12:47 “eu
não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo).
O pecado daquela mulher era suficiente para julgá-la e condená-la,
mas a graça a atingiu de forma irresistível.
Muitos
crentes ficam confortáveis com a ideia de que, como são
pecadores mesmo, o pecado é uma mera consequência de sua
condição. Oro para que o Espírito de Deus te livre deste engano.
Embora nossa condição seja de pecaminosidade, a ação vigorosa do
Espírito Santo nos ajuda a responder com fé à verdade de que
nascemos para uma nova vida em Cristo.
Terceiro,
no confronto com a graça salvadora, aquela mulher respondeu
com arrependimento genuíno à voz de Deus que disse: “vá
e não peques mais”.
Ela foi salva pela graça! Ela não foi condenada, porque “agora,
já não há condenação alguma para os que estão em Cristo.
(Rom 8:1). Lembre-se que a prática obstinada do pecado é sinal de
condenação. O salvo não vive na prática do pecado, ainda que seja
pecador, antes, ele responde a Deus, com fé, pelo testemunho interno
do Espírito Santo, que lhe diz que não é mais criatura, mas filho.
Finalmente,
você pode estar pensando que cristãos não podem emitir juízo
sobre nada. Também não é isso! Nosso critério para
emitir um juízo não vem da nossa competência moral, mas
da graça que
nos alcançou e nos torna sábios para
saber fazer a distinção entre certo e errado, entre o bem e o mal.
Lembre-se do ensino de Paulo ao Coríntios: "Não
sabeis que os santos ão de julgar o mundo?
(...) I Cor 6:1-11.
Oremos
para que Deus nos faça abundar em sua maravilhosa graça e nos ajude
a não atirar pedras com base em nossa performance moral, mas que
possamos humildemente ter os ouvidos abertos para a voz do doce
Espírito de Deus, que nos chama a sermos santos e irrepreensíveis
num mundo caído e cheio de maldade.
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