É POSSÍVEL SUSTENTAR A ABERTURA PRÓPRIA DA EXPERIÊNCIA?
Por Aender Borba
Em
tempos de pragmatismo científico, misticismo semântico, prazer
ligado ao consumo e esvaziamento do sentido da vida, a experiência
tornou-se banalizada porque não diz mais do que ela realmente
significa. Neste sentido, urge o resgate do próprio conceito de
experiência como estruturante do ser humano. A experiência é algo
pessoal e humanizador e seu desafio é acolher a vivência do real
como ela é. Responder à pergunta proposta neste curso é uma
desafio capaz de revelar não só a experiência, mas o seu atributo
de abertura.
O
que é a abertura própria da experiência?
Buscar
uma compreensão sobre a abertura da experiência exige antes que se
firme um conceito sólido sobre como a experiência se estrutura. A
tomada de consciência do ser é como um convite para colocar a
existência diante de algo surpreendente, entendendo que ele mesmo
não pode dar vida a si mesmo. Há uma necessidade do ser reconhecer
que ele tem a possibilidade de dizer “eu” de forma própria. O
“eu” solicita uma presença que se apresenta como algo integral,
completo, autêntico, por isso mesmo não pode ser redutível e nem
banalizado. Toda provocação recebida é uma abertura à existência
e a mim mesmo. O que provoca a experiência não é uma escolha, mas
uma provocação do real.
Para
Guissani (p. 87) a experiência caracteriza-se pelo fato do dar-se conta de
crescer. E isto nos dois aspectos fundamentais: capacidade de entender
e capacidade de amar. Esta característica é uma aceitação à
provocação que solicita uma tomada de posição, de ser si mesmo.
Há um despertamento da experiência para responder ao que vem do
real. A realidade é sempre maior, porém não é possível
apreendê-la toda, justamente por isso é extremamente pretensiosa a
ilusão de que as técnicas (psicológicas) são meios capazes de
promover o controle absoluto sobre a experiência humana, apesar de
serem ferramentas importantes.
A
experiência como capacidade de entender não se reduz ao um mero
fazer, antes é uma maneira de provar, ou seja, um tipo de
inteligência do sentido das coisas. Neste ponto é possível retomar
um sentido bíblico do conceito de “sabedoria”, que não se
refere apenas a um acúmulo de conhecimentos, mas uma habilidade para
lidar com a vida, saber viver. Sendo assim, pode-se dizer que o
dinamismo da abertura da razão é que dá sentido às coisas, pois a
experiência produz uma descoberta capaz de afirmar para quê servem
as coisas no mundo. Cada coisa nos convida a afirmar um significado.
A
experiência, como construto moderno da psicologia deixou de ser
critério para dizer se algo é ou não é. O paradigma moderno de
ciência positivista a considera como um fator de incerteza, ou
subjetivista demais, sem comprovação exata. Fazendo isso perde-se a
concepção de como ela se estrutura. A alta complexidade da
experiência envolve aspectos dinâmicos, de linguagem, de
compartilhamento de juízo, mas sobretudo de abertura (para dentro e
para fora). É preciso dar-se conta de que a vida imprime elementos
vivenciais dentro de cada um, mas eles se dão de forma histórica e
possuem elementos que estão no mundo. O significado impresso nas
coisas evoca as exigências que são provocações que emergem na
relação com elas, por isso sujeito e objeto são inseparáveis. A
abertura é um grito de liberdade dado do cativeiro sensorial, pois
ele abre a possibilidade para uma experiência de cuidado. Mais do
que dicotomizar a experiência interna e externa, como constituições
distintas e irreconciliáveis, nas palavras de Trinca (1991) é
preciso fundir as duas realidades e harmonizá-las não valorizando o
primado de uma sobre a outra.
É imprescindível destacar que o “eu” se constitui e se desenvolve
no relacionamento com a alteridade. O ser possui uma dimensão
relacional que abre caminho para prosseguir até o significado
exaustivo da coisa, ou seja, é diante do infinito que se dá a
abertura da experiência. O ponto central dessa caminhada é o
reconhecimento da alteridade que possibilita o ser-eu-mesmo.
O
fechamento à espreita.
Uma
característica que impede o desenvolvimento da pessoa é o
preconceito. Ele é um tipo de atitude de fechamento que combate
frontalmente com a natureza da experiência que é justamente a
abertura. O preconceito não é o mesmo que pre-julgamento, pois o
juízo é uma reação necessária que se torna critério para a
experiência. O critério para avaliar a experiência não é uma
reação, mas a abertura, no sentido que as reações se tornam
sentido do juízo. Numa relação terapêutica, por exemplo, é
preciso aprender a colher a provocação do acontecimento, não
induzindo o paciente a elaborar, mas apontar caminhos para que a
pessoa seja capaz de fazer seus próprios caminhos sem que os
apontamentos sejam critérios objetivos como um único caminho
possível.
A
questão do preconceito não é moral, a questão é que a busca que
nos constitui nos faz elaborar para alcançarmos um significado.
Neste caso, tanto as reações positivas, quanto as negativas são
provocações para a vida, embora quando são positivas tenhamos mais
dificuldades de reagir.
Nossa
sociedade afundou-se em um projeto de si mesmo que inviabilizou todo
e qualquer tipo de realização. O contexto cultural em que vivemos
pede que tudo seja nivelado por baixo. As relações foram se
deteriorando e tudo que se faça de forma autêntica é tido como
passageiro e sem sentido. Pessoas são capazes de dizer que o
casamento é eterno, mas se divorciam várias vezes. Ser diligente
com o trabalho tornou-se uma postura alternativa e não de
estabelecimento de critérios para abrir possibilidades dentro
daquele trabalho. A modernidade produziu um sentimento de que uma
experiência positiva, de felicidade, por exemplo, é desqualificada.
Os encontros foram tão banalizados e a sociedade tão alienada que
vale mais uma foto com o cantor ao final da apresentação, mesmo
tendo dormido durante todo o conserto, do que se deliciar com a obra
executada. O fechamento produz um esvaziamento de sentido estético,
ético e moral, pois o critério é o estabelecido socialmente. No
padrão que está colocado, ser sensível é inaceitável. Enquanto
as práticas da psicologia (cito-a por me situar dentro dela)
estiverem preocupadas apenas em tratar no âmbito ideológico e o
sujeito for apenas uma bandeira usada como pretexto para afirmar
interesses, manter-se-a um padrão de alienação e privação de
liberdade. O importante é ajudar a pessoa a construir um caminho
autêntico que provocará uma melhora na sociedade. É preciso se
abrir para o drama real da pessoa. É preciso querer o real, pois
isso é o contrário de se enquadrar.
Diante
do drama da vida, por preguiça, pode-se pensar que não exitem mais
possibilidades. A afirmação da impossibilidade, por não se dar ao
trabalho é uma atitude de impaciência e resignação. A preguiça
tratada neste contexto é uma atitude diante do real. “O preguiçoso
não é o que não faz nada, mas aquele que não se ocupa do que
faz.”
Retomada
contínua.
A experiência é algo que é dado, não
inventada, produzida ou criada. A existência é, por si só, uma
postura de risco, porém a sociedade adota uma visão de
autocentramento e individualismo onde tudo deve ser capitalizado.
Temos então uma sociedade de costas viradas para a experiência. Ao
adotar essa postura, ela afirma que é muito difícil aderir ao risco
que a vida é, por isso o sujeito se sente “um peixe fora d'agua”
quando não faz o que é socialmente aceito; ou assume a posição
alienada do politicamente correto. O sentido das coisas surge quando
a pessoa deixa de ter medo e adere à realidade. Uma pessoa que adere
à experiência da realidade com autenticidade, não corre o risco de
estar fazendo algo errado, pois é só o que ela tem a fazer. A
experiência é uma abertura infinita para a vida.
Outro fator de extrema importância na
experiência é o erro. O fato de que erramos prova que somos tensão
o tempo todo na busca pela verdade. “No erro descobrimos que somos
afetados pelo ser e fomos feitos para o verdadeiro”.
Para percorrer o caminho da retomada contínua
é preciso aderir à realidade e a mola propulsora dessa atitude é a
esperança. A esperança é a afirmação de uma presença
reconhecida como radicalmente importante. Sem ela não existe
abertura para a experiência. A esperança não são planos para o
futuro e sim a certeza de uma presença. Ela se apóia num
relacionamento estreito com a certeza de que algo é dado por um
outro. É a confiança na presença que sustenta a razão da
esperança.
A abertura não pode deixar de ser uma busca
contínua do ser humano. Na experiência da abertura o “eu” se
acende, desperta e busca seu caminho. Neste percurso é preciso
reconhecer que existe uma realidade que é mais concreta do que
parece. A vida acontece em nós e acolhemos uma possibilidade dada. A
abertura do humano nos leva ao horizonte de colher algo significativo
nessa realidade.
Referências
GIUSSANI, L.
Educar é um risco.
(N. Oliveira, Trad.). Bauru, SP. Edusc. 2004. Pp. 87-89.
TRINCA, W. A
etérea leveza da experiência.
São Paulo: Siciliano. 1991.
Anotações feitas durante as aulas do Grupo de Experiência Elementar no primeiro módulo do curso.
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